quarta-feira, 14 de março de 2012

itinerário

Lá pelas 20h30 ele surtou.
Desistia, não suportava mais. São Paulo não era lugar para seus sonhos.
São Paulo não lhe permitia nem mesmo dormir decentemente.

O estopim teria sido o torcicolo, a dor na lombar, os consecutivos diálogos abortados a cada ponto de descarga e reabastecimento de passageiros, ou qualquer outro subproduto das três horas em que aplainaram suas nádegas naquele ônibus.

 A mesma situação, dia após dia. Encheu-se de fúria, encheu os pulmões. Mas o grito era abafado pelos  tantos fones de ouviduos. Esvaziou-se bufando, alívio resignado. Queria descontar fisicamente sua raiva  contra o aquário de assentos enfileirados. Suas forças, contudo, mal davam conta de carregar sua mala.

Nem seu braço seria capaz de erguer, tantos eram os que ao redor o comprimiam. Tanta pressão lhe fez perguntar-se porquê são tantos ali, se nem a ele, um só que era, o veículo não lhe resolvia o problema de despacho urbano.

 Era hora de sair, seria homérico se abandonasse mala e vida, quebrasse o vidro e fugisse. Superou-se: ajustando seu equilíbrio ao anda-e-para intermitente, o primeiro braço foi estendido num alongamento dramático. Deu o sinal puxando a cordinha, negando ideologicamente o progresso do botão à confortável altura de seus cotovelos.

Ainda não era seu ponto, mas o labirinto de mochilas e bolsas era tão absurdamente extenso que não chegaria tão cedo à porta. Lá fora gritaria. Lá fora seria livre, cantaria e seria ouvido. Mas é São Paulo e Lá fora chove. A água, sem qualquer glamour que endossar sua rebeldia, é carregada de ácido e não lhe permite sair. Não importa, já são 7h da manhã. O ônibus segue o sentido inverso e compõe um padrão de cinzas que apenas Escher poderia entender. Já ele e a cidade não têm mais sentido.

segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

possibilidades

O metronomo digital do meu dia-a-dia já me dá inesperadas três horas de uma madrugada que nem percebi começar.

Entretido por mídias sociais nas quais as pessoas nem sempre exibem o rosto - posto que este nem sempre é como desejam, ou que nem sempre é este o que se pretende exibir - excedo minha sensatez e o recorde do meu sono, digerindo downloads de informações breves sobre a privacidade de outros notívagos anônimos que pensam em suicídio ou culinária, sobre um novo atentado ou catástrofe que ceifara a vida de milhares de cidadãos inocentes e alheios aos incidentes e à consequente cobertura da grande imprensa.

Dormir seria coerente, pra não prejudicar minha saúde. Ou, mais coerente ainda, seria aceitar minha vocação para a autodegradação e temperar o processo com vodka, café e nicotina, como faziam os antigos. Dedico à eles meu respeito próprio, mas o meu "conselheiro", como diria o Mago Diarista, ainda não se decidiu se me corrompe pela preguiça ou pela luxúria.

Não vejo razão para as pálpebras abertas. Não é o post, asseguro. Minha prolixidade, manifesta nesta prosa pedante, alcançará a redenção em uma rasa cova na vala comum dos blogues, arquivado na pretensa nuvem dos deuses da informação, onde finalmente encontrará a modéstia de seu significado. Destino similar ao das folhas de caderno que guardavam os poemas até o limbo do tempo trazer-lhes a obsolescência , e a banda larga confinar-lhes ao desinteresse.

Na nuvem, ainda poderá assombrar ocasionalmente um monitor ou outro, devido ao resultado equivocado de um site de buscas. Bem como quem pega, além de sinusite, um livro na vigésima prateleira de uma biblioteca.

Devo esperar encontrar algo novo, ossos e profiles.